Spiritual Path

Friday, December 14, 2007

As múltiplas faces do amor

Este artigo é de uma grande amiga. Ele será publicado na revista Bodisatva. Fala sobre diferentes faces do amor, mas principalmente sobre o homem-mulher e como é a sua percepção pelo Budismo, como se dão as uniões sob a perspectiva do budismo tibetano. Thareja é jornalista e budista, além de ser uma mulher mais que especial.
Uma boa leitura.

Por Thareja Fernandes

“Eu não te amo mais.” Quem já passou pela experiência de ouvir esta frase sabe quão difícil é ouvi-la. Claro, é algo que só acontece na relação de casal. Seria difícil imaginar uma mãe dizendo para um filho: “sinto muito, mas meu amor por você acabou. Foi bom enquanto durou, mas a partir de agora cada um segue seu caminho”. No entanto, chamamos de amor, tanto um sentimento quanto o outro. Em muitas tradições religiosas fala-se do amor a Deus, considerado o mais elevado de todos. Existem ainda muitos amores possíveis: o amor fraterno, o amor pela terra em que se nasce, pelos animais, etc. O termo, de tão abrangente, torna-se vago. O que é o amor, então? É possível que acabe? Ou estaríamos falando de sentimentos diferentes abrigados sob um conceito demasiadamente amplo?

Muitos não têm dúvidas a respeito. Para eles, é óbvio que se trata das múltiplas faces do mesmo sentimento, ainda que o amor entre um homem e uma mulher seja diferente de todos os outros. E o que o torna único é a existência do desejo sexual. Entretanto, tudo é amor e as principais características das relações amorosas são a vontade de estar perto do ser amado - seja ele um marido, um filho, um cachorrinho de estimação ou Deus – e o sentimento de posse: fulano é o meu irmão, sicrano é o meu filho e até Deus é o meu Deus.

Nas relações de casal, o sentimento de posse é ainda mais presente. Nestas complexas ligações, é possível - e sensato - fazer a distinção entre a pura atração sexual, a paixão e o amor, ainda que no Ocidente os dois últimos termos sejam frequentemente usados como sinônimos. Por aqui, o estado de enamoramento, de apaixonamento, é dos mais valorizados. Exaltamos a paixão. Nossos romances, novelas e filmes narram histórias que acabam quando, finalmente, o casal consegue ficar junto. Imagina-se que a partir dali eles serão “felizes para sempre”, eternamente apaixonados.

Como diz Denis de Rougemont, em seu livro O amor e o Ocidente, “(...) tudo em nós e ao nosso redor glorifica a tal ponto a paixão que chegamos a considerá-la uma promessa de vida mais viva, uma força que transfigura, algo situado além da felicidade e do sofrimento, uma beatitude ardente”. Este pensamento, ainda segundo o autor, “compele o amor-paixão a assumir a forma de adultério em nove entre dez casos” (1988, pp. 17 e 18).

Rougemont explica que o amor-paixão, amor cortês ou amor romântico, surgiu na Europa medieval, com as relações estabelecidas entre uma dama, geralmente casada, e seu vassalo. O vínculo mantido era forte, embora idealizado: raramente passava de olhares e sorrisos discretos. O vassalo prestava favores à sua dama, adorava-a a distância, suspirava por ela, mas a respeitava muito para ultrapassar os limites dos bons costumes, embora isso às vezes acontecesse.

O psicólogo junguiano, Robert A. Johnson, em seu livro We, a chave da psicologia do amor romântico, defende a tese segundo a qual o amor-paixão surge como substituto ao amor divino, existente no Oriente. Segundo ele, com a secularização européia, o homem deixou de ter para onde canalizar sua necessidade de êxtase e criou o amor romântico. Se nos lembrarmos de alguns “sintomas” da paixão, como a perda total ou parcial da capacidade de discernimento (a depender da maturidade da pessoa atingida), o tremor no corpo, a aceleração dos batimentos cardíacos, o sentimento de felicidade e alegria, assim como a sensação de plenitude e perfeita satisfação que invade o apaixonado podemos, facilmente, concordar com o autor.

Muito antes da invenção do amor-paixão, na Grécia antiga, Platão, em seu famoso livro, O Banquete, narra uma conversa entre filósofos, cujo tema é o amor. Para Aristófanes, um dos convivas, no início dos tempos, cada ser humano tinha quatro pernas, quatro pés, quatro braços e uma cabeça com duas faces. Seus órgãos sexuais também eram duplicados. Sentindo-se poderosos, os humanos insurgiram-se contra os deuses e Zeus, furioso, castigou-o cortando-o pela metade. Foi a partir de então que teve início a busca da complementação, da “cara metade”, que pode, inclusive, ser do mesmo sexo.

Em seguida, é a vez de Sócrates, o mais querido e respeitado entre os filósofos do seu tempo, falar no banquete narrado por Platão. Ele conta uma conversa que teve com Diotima, uma sacerdotisa, para quem amor verdadeiro é aquele que contempla a beleza, sem se entregar aos prazeres corporais. Com o passar dos séculos, denominou-se “amor platônico” o amor idealizado e não declarado.

O mundo moderno uniu as duas construções acerca do amor: a antiga e a medieval. O “par perfeito” é um dos símbolos mais presentes no nosso imaginário, exercendo, inclusive, pressão sobre os solteiros. A publicidade, a música, a literatura e o cinema, entre muitas outras “ferramentas sociais” reforçam a idéia segundo a qual o amor entre homem e mulher é a mais importante, senão a única, fonte de felicidade e sua expressão maior é a paixão. Por uma conexão natural com o reino dos deuses, a maioria de nós almeja apaixonar-se perdidamente; viver, ao menos uma vez na vida, uma grande e a avassaladora paixão, que, não raro, é chamada de amor. Diz-se “estou amando”, quando na verdade, está-se apaixonado. Mas qual seria então, a diferença entre amor e paixão?

A ciência, o maior e mais forte entre todos os mitos modernos, afirma que a paixão dura entre cinco e sete anos, quando os hormônios deixam de produzir as emoções intensas associadas a este sentimento. A partir daí, ou a relação acaba ou é transformada em amor. Caso continue, outros hormônios, que causam sensações mais tranqüilas e duradouras, passam a ser fabricados e o casamento tem grande chance de durar “para sempre”. No entanto, não são raros os casos de casais que se separam depois de 20 ou 25 anos de vida em comum e justificam o afastamento com o fim do amor, o que parece comprovar que os sentimentos estão para além da química.

De todo modo, é certo que a paixão acaba e com ela a sensação de êxtase e felicidade. O dia-a-dia exige do casal muito mais que desejo sexual, cujo fim, entre outras coisas, também está por trás da fatídica frase “eu não te amo mais”. É difícil dizer o que acontece primeiro (e isso varia de relação para relação), se o fim do desejo ou da admiração e encantamento que o gera, mas quando isso acontece rapidamente o príncipe vira sapo e a princesa, abóbora. O apego, aquela necessidade visceral de ter o outro perto de si e para si, geralmente confundido com amor, desaparece como que por encanto. Os defeitos do outro, antes não vistos ou até considerados idiossincrasias interessantes, passam a ser obstáculos insuperáveis. Aquele ser que despertava as mais belas e profundas emoções, agora só é capaz de provocar aversão.

Quando o desejo e o apego são minados pela convivência diária, busca-se um culpado, que, evidentemente, é sempre o outro. Foi o outro quem mudou, que passou a roncar, engordou, é pouco ambicioso ou reclama de tudo. Ou que não muda nunca! Assim, justificamos totalmente a nossa aversão. Como sempre fazemos, vemos fora, o que de fato, está dentro. Esta é, segundo o lama Padma Samten, a principal característica do amor romântico: “acreditamos que a fonte, a origem, do amor está no objeto externo, no outro”. Carentes, queremos voltar a sentir as sensações agradáveis que experimentávamos no início do namoro. Certos de que só uma terceira pessoa pode propiciar isso, viramos as costas àquele que era “o amor da nossa vida” e partimos em busca de uma nova paixão. Quando a encontramos, tudo recomeça...

Se o novo encontro se dá quando ainda estamos casados (aqui voltamos ao imaginário do amor cortês e sua valorização do adultério), o problema é maior. De acordo com Leandro Konder, em seu recente livro Sobre o Amor, “a confusão aumenta quando, na tentativa de explicar o que se passa (ou se passou) com ele, o sujeito recorre a um esquema teórico de tipo ‘determinista’ e tende a ver o desencadeamento das tempestades de uma paixão como uma ‘fatalidade’. Por mais arrebatadora que seja, a paixão jamais elimina completamente a participação da vontade do sujeito. Há momentos de ‘liberdade’ no interior do processo que se realizam sob forte pressão de um sentimento vivido como ‘necessidade’” (2007, p.10).

Apesar de forte e mobilizadora, a paixão, no linguajar budista, é um impulso como outro qualquer, tão difícil de resistir como a um doce para quem gosta muito de açúcar, ou a um drink para quem tem dificuldade de resistir ao álcool. Difícil, mas não impossível, como afirma Leandro Konder. A questão que se coloca, em geral, não é não poder resistir, e sim, não querer, ainda que esta decisão não seja consciente.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que procuramos o nosso “companheiro ideal”, a pessoa de quem só a morte nos separará, buscamos paixões intensas e fortes emoções que fatalmente sucumbem ao peso do cotidiano. De todo modo, estamos autocentrados, pensando apenas em nós mesmos e em nossa própria felicidade.

De acordo com o budismo, este modo de agir - buscar a felicidade pessoal e afastar o sofrimento – é a forma natural de viver de todos os seres, e não apenas do ser humano. Assim sendo, será possível manter um relacionamento feliz por toda uma vida?

Antes de nos debruçarmos sobre esta questão, é preciso voltar ao conceito de amor. Vimos que tanto a construção antiga do amor - que complementa o ser carente, posto que não é mais inteiro -, quanto a construção medieval do amor-paixão nos fazem felizes por um tempo, mas trazem muito sofrimento quando acabam. No budismo, diz-se que esta é a relação usual da roda da vida, do samsara, que seria melhor caracterizada como desejo e apego do que como amor. Segundo os ensinamentos do Buda, o amor é um tipo de inteligência; é a capacidade de ver as qualidades do outro e fazer o possível para que elas desabrochem, ou ao menos aspirar que isso aconteça. O amor é uma das quatro qualidades incomensuráveis (as outras são compaixão, alegria e equanimidade), chamadas incomensuráveis porque podem aumentar sempre, e não tem expectativa de retribuição.

Dito isso, podemos nos voltar à questão anterior. É possível “ser feliz para sempre” quando ainda estamos presos à ignorância samsárica? É possível, com toda nossa confusão, vivenciar uma relação a dois que não seja egoísta e auto-centrada? Chagdud Tulku Rinpoche, ao realizar cerimônias de casamento, dava alguns conselhos aos casais. O primeiro deles era o ensinamento da impermanência. Dizia ele: “É natural que vocês aspirem estar juntos por um longo tempo, mas vocês não podem saber o quanto suas vidas ou o seu relacionamento durará. Tudo em nossa experiência é impermanente. (...) Se entenderem a impermanência, vocês entenderão a importância de usar bem o seu tempo juntos”.

O lama continua: “Se ambos tiverem uma preocupação com a felicidade do outro, vocês nunca poderão ser separados. Seu elo não poderá ser quebrado. Se a sua motivação fundamental for esperar que o outro o faça feliz, o seu casamento não será tão fácil e a sua felicidade não durará muito. Abordar o casamento a partir de um ponto de vista autocentrado automaticamente estabelece uma circunstância que vai atravessar o bem maior que é possível. Mas se a sua motivação for a de levar o outro à felicidade, ambos serão felizes a curto e longo prazo e trarão felicidade àqueles ao redor de vocês. Este é o significado do sucesso tanto no sentido espiritual quanto no mundano”.

Ao agir desta forma, invertemos a lógica de auto-centramento do samsara e começamos a nos mover no mundo como um bodisatva, como um ser que leva benefício aos seres, colocando a felicidade do outro à frente da sua própria. Em outras palavras, começamos a estabelecer relações lúcidas e a evitar o nosso próprio sofrimento. Fácil não é. Mas parece ser a única saída. Vale a pena tentar.


Referências Bibliográficas:
JOHNSON, Robert. We. A Chave da Psicologia do Amor Romântico. São Paulo: Mercuryo, 1987.
KONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007.
PLATÃO. O Banquete. Lisboa: Difel, 1986.
ROUGEMONT, Denis: O amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara,
1988.

1 Comments:

  • At 5:27 PM, Blogger Teresa said…

    Gostei muito do artigo! Parab´´ens à autora:)
    Beijinhos

     

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